O Intermitente<br> (So long, farewell, auf weidersehen, good-bye)

O Intermitente
(So long, farewell, auf weidersehen, good-bye)

terça-feira, dezembro 02, 2003

O Futuro a Deus Pertence

Artigo de Nelson Ascher (link não disponível)

Prever o futuro era, outrora, um ofício reservado a certos profissionais. Entre os antigos gregos, romanos e celtas, arúspices examinavam, para tanto, as entranhas de bichos recém-sacrificados, ornitomantes estudavam o vôo e o canto dos pássaros, quiromantes liam as linhas das palmas da mão, oniromantes ou brizomantes interpretavam sonhos, piromantes observavam o movimento das chamas etc. Os mesopotâmios, que preferiam a astrologia, perscrutavam o firmamento para elaborarem seus horóscopos e, há mais de 3.000 anos, antes mesmo de desenvolverem o "I-Ching", os chineses da dinastia Shang deixavam no fogo omoplatas de animais ou cascas de tartaruga até que as rachaduras provocadas nestas pelo calor elucidassem suas dúvidas.

De todos os lugares frequentados pelos que desejavam desvendar o porvir, nenhum se tornou tão célebre quanto o templo de Delfos, na Grécia. Era em seu ádito, um santuário reservado à pitonisa, que esta, sob a influência de vapores subterrâneos, recebia as mensagens transmitidas por Apolo a quem viesse consultá-lo. As revelações do oráculo costumavam ser convenientemente ambíguas. O grande exemplo é o de Creso, rei da Lídia, que, perguntado se deveria invadir ou não a Pérsia, interpretou de forma algo otimista a frase segundo a qual, terminada a guerra, um poderoso reino cairia: foi seu reino o que caiu. Essa lenda inspirou Shakespeare a pôr na boca das bruxas que instigam Macbeth a tomar o poder na Escócia o verso ("When the battle's lost and won") que fala de uma batalha perdida e ganha: perdida por um contendor, ganha pelo outro.
O problema óbvio de qualquer previsão insuficientemente dúbia é que, salvo se disser respeito a um futuro longínquo, ela corre o risco de ser verificada e, em geral, desmentida. Não é por isso, no entanto, que só resta atualmente aos adivinhos de carreira oferecerem seus serviços a cônjuges desamados, doentes desenganados e empresários falidos, pois, afinal, o homem moderno, urbano e pós-graduado continua tão supersticioso quanto o que viveu durante a última glaciação. Acontece que, quando o que está em jogo são questões mais amplas, como as de natureza social, econômica ou política, as ciganas e as cartomantes, vítimas da concorrência desleal, foram substituídas por gente que, conhecendo o futuro como a palma da mão de um maneta, maneja estatísticas e pesquisas variadas como um bebê, uma kalashnikov.

Nunca na história das conflagrações humanas tantos peritos desinformaram tantos leigos com tantas interpretações enviesadas e predições absurdas. Se Stanislaw Ponte-Preta estivesse vivo, ele teria, após 11 de setembro de 2001, de abrir concurso público para contratar uma legião de auxiliares, porque sozinho não conseguiria dar conta do atual "Febeaplá" (Festival de Besteiras que Assola o Planeta). Assim, mal os EUA principiaram sua campanha na Ásia Central, já sobravam entendidos não somente lembrando que a região havia sido o túmulo dos exércitos inglês e soviético, mas acenando com o devastador inverno afegão. (Curiosamente, nenhum deles anteviu o desastroso verão parisiense.) Quanto ao Iraque, comentadores diversos asseguraram que os americanos não desafiariam o veto de países interessados em preservar seus investimentos e antigas amizades. Traídos por Bush, eles garantiram em seguida que os iraquianos repeliriam heroicamente as tropas ianques, Bagdá se converteria numa nova Stalingrado inconquistável e milhões de inocentes morreriam na maior catástrofe humanitária desde o dilúvio bíblico. Seu mantra atual é o de que a coalizão anglo-australo-americana se atolou num Vietnã renovado e este, desmoralizando (juntamente com uma economia falida) os republicanos, levará em breve à Casa Branca um democrata que terá o bom senso de submeter sua nação aos ditames da burocracia européia e onusiana. Veremos.

Mas talvez não seja apenas um caso de pessoas projetando, nos dias, meses e anos vindouros, sua incompreensão do presente e seu desconhecimento do passado. Se há um vício que sobretudo os especialistas em política internacional têm se mostrado incapazes de superar, este é o que os ingleses chamam de "wishful thinking", Antônio Houaiss traduz poeticamente por "pensamento veleitário" e, trocando em miúdos, consiste em identificar os próprios desejos com a realidade ou, como diria Luigi Pirandello, "assim é, se lhe parece". Apesar de o paradigma mesmo com que se interpretavam as relações internacionais ter mudado, aqueles que investiram tempo de sobra e, quem sabe, alguns neurônios em concepções agora obsoletas não estão, compreensivelmente, dispostos a recomeçar do zero.

Nada colabora mais com tal resistência paralisadora do que a apatia de um público que, não obstante dispor da internet e ter acesso à blogosfera, prefere poupar dissabores aos especialistas, raramente lhes colocando perguntas embaraçosas como: "Por que nenhuma de suas recentes previsões se confirmou?" Em épocas mais sérias os falsos profetas eram apedrejados. Os contemporâneos, contudo, passam por bravos dissidentes. E, enquanto eles se ocupam do porvir, quem busca entender o presente desempenha um papel de Cassandra, a mais bela filha de Príamo, rei de Tróia, que oferecera seus favores a Apolo em troca do dom da profecia. Como o deus, pagando adiantado, não recebeu a mercadoria prometida, ele puniu a moça condenando-a a profetizar sem ser ouvida. O que mudou desde então? Hoje em dia quase ninguém quer acreditar não em previsões, mas nos fatos.

posted by Miguel Noronha 8:29 da manhã

Powered by Blogger

 

"A society that does not recognize that each individual has values of his own which he is entitled to follow can have no respect for the dignity of the individual and cannot really know freedom."
F.A.Hayek

mail: migueln@gmail.com