sexta-feira, dezembro 19, 2003
Por que me tornei um liberal
(Porque passei uma noite na cadeia)
Artigo do jornalista João Mellão
Aos 21 anos, estudante de administração da Fundação Getúlio Vargas, eu era socialista. Na verdade, naquela idade e naquela época, eu não tinha outra opção. Todo jovem, a não ser que tenha envelhecido precocemente, é idealista. E qualquer idealista, ao travar conhecimento com a realidade brasileira, eivada de mazelas, imoralidades e iniquilidades, sente-se obrigado a tomar posição, lutar por um mundo melhor, defender princípios diferentes daqueles que levaram a sociedade a tornar-se tão perversa. Naqueles tempos de "distensão lenta e gradual" (77) o mercado ideológico, na área estudantil, era bastante restrito. Quem não era marxista ou anarquista, era taxado automaticamente de reacionário, podendo, dentro desse rótulo, optar entre duas alternativas: ou era alienado e inconsiente, ou era mau caráter mesmo.
Minha fé socialista, minha crença na capacidade do Estado de desenvolver a Nação, reduzir a miséria e conduzir a sociedade, começou a abalar-se, ironicamente, no dia em que fui "preso".
Realizávamos, solenemente, uma das primeiras passeatas estudantis pós 068, na rua 25 de março, quando a tropa de choque do coronel Erasmo Dias bloqueou as nossas saídas, e cerca de uns 40 estudantes, eu entre eles, acabamos sendo presos. Após a indispensável "aula de civismo" por meio de cassetetes, fomos todos conduzidos ao famigerado Deops, a Meca da repressão política de então.
Ali começaram as minhas dúvidas.Em fila indiana, tínhamos de passar por um interrogatório intensivo, trocando de cadeiras na medida em que íamos cumprindo o fluxograma burocrático de identificação civil, classificação ideológica, triagem de liderança etc.etc. O "sistema" começou a falhar quando me sentei na primeira cadeira.
- Carteira de identidade!
- Não trouxe ...
- Como é que o senhor vai a uma passeata sem identidade? Desesperou-se o funcionário.
- Ninguém me avisou que era necessário...
- E como é que eu faço agora?!
- O senhor pode confiar na minha palavra. Eu lhe dou os dados direitinho, procurei facilitar.
O meu caso, não previsto no manual, atrasou a triagem por umas duas horas. O "investigador" foi consultar o "encarregado", que procurou pelo subchefe, o qual foi atrás do chefe, que correu atrás do delegado, que interpelou o diretor, o qual não foi encontrado porque não fora trabalhar naquele dia.
"MINHA FÉ SOCIALISTA SE ABALOU NO DIA EM QUE FUI PRESO"
Na falta de outra alternativa, resolveram aceitar, com muita relutância, a minha humilde sugestão. Ficou tudo na palavra de cavalheiro. Até hoje fico pensando o que teria acontecido se eu tivesse mentido naquele dia. Provavelmente o inquérito estaria correndo até hoje, e nunca iriam descobrir quem foi o responsável pela falha.
Saí dali, lá pelas 4 horas da manhã, com mais dúvidas do que quando havia entrado. A mais eficiente máquina de informações e repressão que o Estado fora capaz de criar funcionava daquele jeito...Imagine o resto. Comecei a duvidar, naquele dia, da capacidade de resolver problemas de que o aparato estatal se diz possuidor.
Ali mesmo, na porta do Deops começou a nascer a minha convicção liberal. Insultava a minha inteligência acreditar que o estado socialista, por ter ideologicamente trocado os sinais, pudesse ser mais eficiente que o capengante Estado capitalista. O funcionalismo público, fosse qual fosse a ideologia dominante, haveria de ser sempre o mesmo: inoperante, ineficiente, desmorativado e aferrado ás normas e procedimento do manual.
A minha vivência posterior na iniciativa privada e em cargos de comando na área pública serviu para criar embasamento prático, àquilo quem, em 1977, era apenas uma desconfiança. O Estado não resolve problemas:cria-os em maior quantidade . Na Prefeitura de São Paulo, um doa quatro maiores aparatos estatais do Brasil, reconhecidamente a máquina pública mais eficiente do País independentemente dos governantes de plantão, um processo dos mais simples, demanda em média, 400 dias de tramitação, o que significa um mínimo de 130 dias em cada mesa de repartição. Isso se não houver complicações. Há, na Prefeitura, pelo menos 20 processos inacabados do ano de 1908, um deles referente ao pagamento de indenização ao proprietário de uma mula atropelada por um bonde.
É através desse Estado, com toda a sua produtividade e eficiência, que as esquerdas pretendem resolver os problemas do Brasil. O meio proposto é agigantá-lo ainda mais, fazer com que ele, progressivamente, interfira mais e mais nas relações sociais, políticas e econômicas da comunidade.
Se o Estado brasileiro, do tamanho que é, com suas leis absurdas e seus procedimentos kafkianos, já logrou colocar maior parte de nós na ilegalidade (sua casa não está dentro das posturas municipais, sua loja transgride a lei em pelo menos dois ou três códigos, cada um de nós faz jus, pelas nossas leis, a pelo menos cinco anos de cadeia), tenho arrepios só de pensar no dia em que ele multiplicar-se de tamanho, tiver de tratar de problemas muito mais complexo que os atuais, ou precisar lidar com circunstâncias muito mais dinâmicas do que as que já enfrenta. Na primeira falta de uma carteira de identidade, a Nação ficará paralisada pelo menos um século. O Brasil será, infelizmente, um imenso inoperante Deops.
posted by Miguel Noronha 11:19 da manhã
Comments:
Enviar um comentário