segunda-feira, junho 07, 2004
Entre um Dia D e o Próximo
Artigo de Nelson Ascher na Folha de São Paulo.
Ontem se comemorou o 60º aniversário do Dia D. Em 6 de junho de 1944, cerca de 7.000 embarcações vindas da Inglaterra se aproximaram da costa da Normandia (noroeste da França) precedidas e/ou acompanhadas por milhares de aviões. Tratava-se não só do início do ataque à "fortaleza Europa" como também da abertura, pedida por Stálin, de uma segunda frente de batalha que aliviaria a pressão do Exército alemão sobre a Rússia. Antes do fim do dia, mais de 100 mil soldados americanos, britânicos e canadenses tomaram cinco praias pré-selecionadas cujos nomes em código eram Omaha, Utah, Juno, Gold e Sword.
Entre os fatores que asseguraram o sucesso da "operação Overlord", estava a brilhante campanha de desinformação promovida pelos aliados que levaram os alemães a acreditarem que o desembarque ocorreria ao norte, no passo de Calais. Apesar disso, o desembarque custou aos aliados, em menos de 24 horas, algo em torno de 10 mil baixas entre mortos, feridos e desaparecidos, dois terços das quais sofridas pelos americanos.
O Dia D marcou o começo do fim da ocupação alemã da Europa Ocidental, inaugurando em seu lugar meio século de paz e prosperidade. Caso o desembarque tivesse fracassado, não é impossível que a região envolvida pertencesse agora a um império totalitário dividido em senhores e servos, sem um único judeu, cigano ou homossexual. Uma hipótese mais misericordiosa, decorrente da eventual (mas não garantida) vitória do Exército Vermelho, seria a extensão do sistema soviético até o litoral do oceano Atlântico.
A gigantesca operação salvara a metade afortunada do continente quer de um presente terrível e de um futuro perigoso, quer do peso de um passado que seus habitantes não conseguiram superar sozinhos, pois a Segunda Guerra não deixava de ser a continuação do megaconflito anterior. Pode-se dizer que as duas conflagrações mundiais foram uma espécie de guerra civil européia que, durando 31 anos, de 1914 a 1945, resultou na partilha da Europa em dois protetorados: o bloco ocidental e o soviético. Quando, com a dissolução em 1989 daquele dominado pelos russos, esse sistema terminou, não era difícil verificar quão mais benigna fora a tutela dos EUA.
Ainda assim, o fim, a partir de 1945, da hegemonia européia no planeta não veio sem seqüelas, muitas das quais seguem gerando problemas até hoje, por exemplo, nos Bálcãs e no Oriente Médio. A descolonização da África e do sudeste asiático trouxe tantas complicações quanto as que resolveu. Além do mais, a Europa exportou idéias e ideologias, como o nazismo, o fascismo e o comunismo, que se revelaram não menos desastrosas no Terceiro Mundo que em seus países de origem.
Basta, porém, passar os olhos pela imprensa continental, em particular a francesa, para constatar que a importância da maior operação anfíbia da história e seus desdobramentos, em especial a contenção do expansionismo soviético, vem sendo relativizada e diminuída por seus principais beneficiários. Imitando a Áustria vizinha, que, malgrado haver participado entusiasticamente do processo racista e exterminatório de conquistas concebido por um de seus filhos, alega desde a derrota ter sido sua "primeira vítima", a Alemanha tenta atualmente sair do rol dos vencidos para se integrar ao dos libertados, enquanto a França, após exagerar hiperbolicamente a importância de seus movimentos de resistência, tem feito o possível para se esquecer de quem lhe garantiu, seja na Primeira e Segunda Guerras, seja durante a Guerra Fria, a liberdade.
Nos dois casos o afã de reescrever a história é fácil de entender. Os alemães, descarregando o grosso da culpa sobre um grupo restrito de indivíduos (Hitler e a alta hierarquia de seu partido), gostariam de se desligar da imagem que adquiriram como perpetradores dos piores atos de barbárie do século 20. Já os franceses consideram uma mancha indelével em seu orgulho nacional o fato de terem sido repetidamente salvos pelos "anglo-saxões". Como se isso não bastasse, a França, conforme via sua importância se erodir no cenário internacional, teve de amargar nos anos 50 e 60 duas humilhantes derrotas militares, uma no Vietnã e a outra na Argélia.
A causa imediata, porém, é a vontade que as duas nações alimentam de unificar política e economicamente o continente inteiro a sua imagem e semelhança e sobretudo sob sua orientação. Que o núcleo franco-germânico da guerra civil européia tenha se acalmado graças à exaustão dos dois lados é um resultado que, embora bem-vindo, não basta nem para apagar sua ficha corrida nem para legitimar a liderança à qual os dois países almejam. Daí a necessidade de mitigar episódios como o Terceiro Reich e Vichy através da demonização dos Estados Unidos e do Reino Unido, que não passaria de seu obediente lacaio. Quanto à gratidão, ela não é uma prioridade da Europa Ocidental, e os povos do leste (poloneses, tchecos, húngaros etc.), que devem menos aos anglo-americanos, a manifestam com mais freqüência e sinceridade.
Os paralelos entre a Segunda Guerra e a presente luta contra o fundamentalismo teocrático islâmico não são poucos. Ambas as contendas opunham algumas democracias tanto a inimigos obscurantistas como a outras democracias que não os levavam suficientemente a sério e se julgavam capazes de contê-los com uma série ininterrupta de concessões. É razoável supor que, num futuro não demasiado distante, a Europa continental precisará que os anglo-americanos repitam o Dia D para salvá-la das conseqüências de sua própria miopia.
posted by Miguel Noronha 6:59 da tarde
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