O Intermitente<br> (So long, farewell, auf weidersehen, good-bye)

O Intermitente
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segunda-feira, junho 07, 2004

O Significado do Dia D

Artigo de André Glucksmann.

Lamentei há dez anos a ausência do chanceler alemão nas cerimónias na Normandia. Não nego o meu agrado agora, pessoal e filosófico, pela sua presença no aniversário do Dia D.

Graças aos soldados que desembarcaram a 6 de Junho de 1944, mesmo na altura em que a rede de resistência para quem a minha mãe e a minha irmã mais velha trabalhavam se desmantelava graças à acção repressiva de Klaus Barbie - prisões, tortura, corpos esfacelados enviados para sítios de onde sabíamos que nunca voltariam. Agradeço por isso aos americanos, ingleses, canadianos, australianos que me salvaram alguns familiares.

Agradeço àqueles que permitiram que os franceses de hoje pensem de formas diferentes das do nazismo e do estalinismo. Agradeço àqueles que transpuseram a barreira do Atlântico e nos apoiaram até à queda do Muro de Berlim. Sem o Dia D, não existiria uma nova Europa a 6, 15, 25 ou mais. Como privilégio da minha idade, continuo assombrado pela alegria. Foi só em meados dos anos 70 que o Presidente da República Federal Alemã, clara e distintamente, admitiu que a Alemanha tinha sido "libertada", em vez de "invadida", no final da II Guerra Mundial. Foi para fazer a distinção crucial entre estas duas palavras que soldados e resistentes - tanto meus amigos como estranhos - deram as suas vidas em Lyon, Omaha Beach e Estalinegrado.

Actualmente, debatemos despreocupadamente a "legitmidade internacional". Mas a primeira e única verdadeira legitimidade internacional foi inaugurada nas praias da Normandia. Se as Nações Unidas, apesar da sua paquidérmica organização, não se parecem com a falhada Liga das Nações, é porque os seus fundadores em São Francisco juraram que o Japão e a Alemanha não seriam nem conquistados, nem colonizados, mas simplesmente libertados do fascismo. Assim nasceram os dois princípios que silenciosamente constituíram a Carta das Nações Unidas e conduziram às suas inevitáveis contradições: primeiro, o direito dos povos a serem libertados e, segundo, as restrições sobre o direito do vencedor, que não pode conquistar mas pode introduzir a democracia.

O direito dos povos a serem libertados de despotismos extremistas - o direito ao Dia D - sobrepõe-se ao habitual respeito pelas fronteiras e ao velho princípio da soberania. Em relação à Declaração Universal dos Direitos Humanos, e com o nosso conhecimento do totalitarismo, o direito essencial dos povos à autodeterminação não deve garantir nem implicar o direito dos governantes a escravizarem o seu povo. O desembarque na Normandia justifica por isso as recentes intervenções no Kosovo, no Afeganistão e no Iraque, mesmo sem a autorização do Conselho de Segurança. Por uma razão determinante: a legitimidade original que presidiu à criação da ONU prevalece sobre a autoridade em relação à jurisprudência comum das instituições que a originaram. Além disso, o recente décimo aniversário do genocídio tutsi no Ruanda não deixa que esqueçamos esse terrível fiasco das Nações Unidas. Embora o seu líder, Kofi Annan, defenda, em vão, a reforma radical das suas instituições e da legislação internacional.

Mas poderão ainda os Estados Unidos reivindicar o direito de interferência, baptizado na carnificina para libertar a Europa? Isto depois das ignomínias cometidas nas prisões iraquianas, moralmente insustentáveis, politicamente contraproducentes e estrategicamente absurdas, pelas quais são inteiramente responsáveis? Sim, porque para o melhor e para o pior, os Estados Unidos continuam a ser uma democracia. E das mais exemplares. A única que conheço que, no meio de uma guerra, não censura a publicação dos crimes cometidos pelos seus soldados. A única onde a imprensa e a televisão revelam em poucas semanas a extensão dos seus erros, e livremente escrutina as consequências do desastre. A única em que as comissões do Congresso intimam Presidentes, secretários de Estado, generais e chefes dos serviços secretos, para os interrogar implacavelmente e sem restrições.

Em contrapartida deixem-me recordar que a França, tão generosa quando se trata de dar lições aos outros, em 40 anos nunca indiciou, julgou ou condenou um único dos seus soldados que cometeram actos de tortura durante a guerra da Argélia. Só em 2000 é que os chamados "eventos" (1954-61) foram oficialmente rotulados de "guerra" pelo Parlamento. Só passados 50 anos de tudo estar terminado, em 1995, é que o Presidente admitiu a responsabilidade do país pelos acontecimentos entre 1940 e 1945. E até à data, dez anos depois dos massacres e, contrastando com a Bélgica, as Nações Unidas e Washington, o nosso país continua a recusar, à direita e à esquerda, pedir desculpas aos tutsis, que foram vítimas de um genocídio. É isto que nos eleva a nós, franceses, nos eleva moralmente, tornando-nos muito superiores àqueles broncos, aos "yankees", angustiados com uma imprensa insolente, um Senado inquiridor e governantes obrigados a abrir os seus "dossiers" e a explicarem-se em tempo real.

Em qualquer outro lado fora dos Estados Unidos, reparem nas diferenças, imperam as regras do silêncio. Abril de 2004. Primeiro vídeo: tortura sistemática, olhos retirados, presumíveis combatentes desmembrados, pirâmides de corpos. Segundo vídeo: execução deliberada de uma mãe com os seus cinco filhos (idades dos um aos sete anos) nos arredores de Chatoi (Tchetchénia). Dois testemunhos filmados por soldados enojados com as proezas dos seus companheiros. Um jornal de Moscovo, um só, o "Novaya Gazeta", publicou as fotografias. Não houve uma só notícia na rádio. E reinou o silêncio na televisão, no sistema judicial. Não se ouviu uma palavra vinda hierarquia militar ou dos responsáveis políticos. O mundo mantêm-se em silêncio. George W. Bush é recebido por entre manifestações de protesto, Vladimir Putin como um irmão.

Hoje por hoje, os cidadãos americanos são os únicos que se atrevem a escrutinar, a julgar e a condenar em tempo real os abusos cometidos em seu nome. A América não é povoada por anjos, mas continua a ser a nação que lidera a luta contra as violações dos direitos humanos, quanto mais não seja porque se concede os meios para as revelar e tem capacidade de as condenar. Os direitos humanos medem a nossa capacidade de resistência ao inumano, de resistência ao mal que enfrentamos, e ao mal que transportamos connosco.


posted by Miguel Noronha 12:15 da tarde

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