terça-feira, agosto 10, 2004
Ainda o Fahrenheit 9/11
Artigo de Ali Kamel n'O Globo (registo obrigatório).
As mentiras de Fahrenheit 9/11
Quando o filme acabou, a platéia se levantou e aplaudiu. Como se pode enganar tanta gente assim, sem pudor, e ainda ganhar o prêmio principal de Cannes? Fahrenheit 9/11, de Michael Moore, que chamam de documentário, deveria receber outra qualificação. É um amontoado de mentiras e distorções, a serviço de uma teoria que o pior dos roteiristas rejeitaria: Bush, um idiota, é de uma família gananciosa, sustentada pelos sauditas, e, depois de tomar o poder com uma fraude, levou o país à guerra com o Iraque, que até então vivia pacificamente, apenas para que a indústria bélica à qual é ligado lucrasse mais.
O terror está a um passo de ganhar a guerra, pensei. Mas logo me tranqüilizei ao me lembrar de John Kerry se apresentando para o serviço, pateticamente batendo continência: "Não hesitarei em usar a força e não concederei a nenhuma nação ou organização internacional o poder de veto quando o assunto for a segurança dos EUA." Exatamente o que Bush fez: tentou o apoio internacional, não conseguiu, e foi à guerra, com o apoio do Congresso. Fico tranqüilo de saber que, com um ou o outro, terá continuidade a luta contra o terror islâmico, a pior ameaça que o mundo enfrenta desde o nazi-fascismo.
Aqui vou mostrar algumas mentiras do filme (há muitas outras). Uma pesquisa na imprensa americana e na internet ajudou muito. Principalmente, as informações coletadas por Dave Kopel, do partido democrata, mas eleitor de Ralph Nader, como Moore. Kopel é diretor de pesquisas do conservador Independence Institute. Conhece os desvios de Moore desde "Tiros em Columbine", porque, infelizmente, tem o defeito de defender o direito ao porte de armas. Os dados a seguir, vindos de mim, da imprensa ou de Kopel, foram checados nas fontes originais.
O primeiro resultado que a Fox deu sobre a Flórida foi pró-Gore, e não pró-Bush, como diz o filme. A Fox manteve esse prognóstico por seis horas até as duas da manhã, quando se retratou, dando a vitória a Bush. Mas, duas horas depois, pôs a eleição como indefinida.
A recontagem de votos feita por jornais não deu a vitória a Gore, "em todos os cenários". Se a recontagem fosse feita apenas onde Gore a solicitou, a vitória seria de Bush. Se a recontagem fosse geral - o que Gore jamais solicitou - a vitória iria para Gore, se alguns critérios fossem seguidos, e para Bush, se os critérios fossem outros. Se Gore tivesse sido eleito, as mesmas suspeitas de fraude pesariam contra ele.
Bush aparece num jantar de gala, dizendo: "Alguns os chamam de 'a elite'. Eu os chamo de 'a minha base'." Era o jantar anual da Al Smith Foundation, que recolhe fundos para hospitais, quando o convidado deve debochar de si mesmo. Gore, também convidado, fez o mesmo, mas Moore omite.
O filme diz que Bush passou 42% dos seus primeiros oito meses em férias, segundo o "Washington Post". O levantamento incluía os fins de semana de trabalho em Camp David. Ninguém nota, mas numa das cenas, ao lado de Bush, está Tony Blair. Tirando os fins de semana, o tempo cai para 13%.
O filme diz que, em agosto de 2001, Bush recebeu informe do FBI dizendo que "Osama bin Laden estava planejando atacar os EUA com aviões seqüestrados". "Bush pode ter achado o título vago", diz Moore, que corta a cena para Condoleezza Rice, revelando o título: "Bin Laden decidido a atacar dentro dos EUA." Engraçado, mas Moore omitiu o conteúdo do informe, uma colagem de informações de 97 e 98. A parte sobre aviões seqüestrados é o oposto do que o filme sugere: "Não fomos capazes de confirmar algumas das mais sensacionais ameaças como uma que nos chegou (...) em 98 dizendo que Bin Laden queria seqüestrar um avião para obter a libertação do sheik cego Umar Abd al Rahman e outros extremistas presos nos EUA."
Na cena em que Bush passa sete minutos sem nada fazer após o ataque, na escolinha da Flórida, o filme diz que ele ficou lendo um livro chamado "Meu bode de estimação". Uma graça, mas o livro na verdade se chama "Domínio da leitura 2" ("Meu bode" é apenas um exercício do livro).
O filme diz que 142 sauditas, incluindo 26 membros da família Bin Laden, foram autorizados a deixar o país, depois de 13 de setembro, quando o espaço aéreo estava fechado, graças à autorização de Bush. Ninguém teria sido interrogado. A verdade: Richard Clarke, então diretor de contraterrorismo e endeusado por Moore por ter se tornado um crítico de Bush, assumiu inteira responsabilidade pelo ato e garantiu que não pediu a autorização do presidente. A comissão do 11 de Setembro confirmou isso e atestou que todos os procedimentos legais foram observados, com o FBI interrogando a maioria. Basta ler as páginas 329 e 330 do relatório final.
O filme "denuncia" que o serviço secreto protege a embaixada da Arábia Saudita, mas uma de suas missões é exatamente proteger as missões diplomáticas em Washington.
O filme insinua que Bush recebeu delegados do Talibã, quando governador do Texas. É mentira. Eles visitaram a empresa Unocal para conhecer um projeto de gasoduto, apoiado por Clinton, deixado de lado em 98, e jamais retomado. A afirmação de que Hamid Karzai, presidente do Afeganistão, foi consultor da Unocal é mentirosa.
O filme diz que os Bush teriam se beneficiado de US$ 1,4 bi que os sauditas investiram na empresa Carlyle, de onde o ex-presidente Bush é consultor. E afirma que os Bin Laden também seriam investidores da empresa. A verdade: Bush só se tornou consultor da Carlyle anos depois do fabuloso investimento saudita. Os Bin Laden investiram apenas US$ 2 milhões na Carlyle, um nada perto da fortuna deles. Fora isso, o super anti-Bush, George Soros, também é um investidor da Carlyle, assim como muitos ex-assessores de ex-presidentes democratas são ligados a ela. O filme diz que a Carlyle ganhou milhões com a guerra do Iraque, mas ela teve prejuízo: a única arma desenhada para o Exército, mas não comprada pelo governo Bush, foi o Cruzado, um sistema de mísseis que custou à empresa US$ 11 bi. O ex-presidente Bush deixou há tempos de ser consultor da empresa.
O filme diz que Bush deu um mês a Bin Laden, pois não atacou o Afeganistão imediatamente. Moore deixa de contar que Bush passou um mês tentando obter o aval da ONU. Cobravam-lhe a "prova cabal" do envolvimento de Bin Laden, que, numa entrevista, dissera que não era o autor dos ataques, embora os aplaudisse. Moore, na ocasião, disse que, sem provas, Bin Laden tinha de ser visto como inocente. A invasão seria uma atrocidade, opinou. Poucos lembram, mas Bush invadiu o Afeganistão sem autorização da ONU. Só foi "perdoado" porque fitas de vídeo achadas em Cabul se tornaram a prova cabal.
O filme diz que o Iraque jamais ameaçou os EUA ou assassinou americanos. Mas Saddam sempre acolheu terroristas como Abu Nidal, que matou americanos, sempre premiou com US$ 15 mil as famílias dos homens-bombas palestinos, que mataram judeus americanos, e sempre, em discursos e entrevistas, fez ameaças espalhafatosas aos EUA. Após o 11 de Setembro, Saddam declarou que o ataque era o começo da grande revanche.
O número de congressistas com filhos no Exército - apenas um - está errado, são sete, dois no Iraque, um número baixo, mas para que mentir?
O filme é esse lixo. Nossa imprensa, sem revelar as mentiras, foi mais ou menos unânime: "brilhante, mas faccioso", "histórico, mas tendencioso", "bem pesquisado, mas panfletário". Para mim, a adversativa não é um pequeno problema. Porque não se pode compactuar com a mentira e a empulhação. Sobretudo quando não é necessário mentir para ser anti-Bush ou antiguerra. O filme desmerece os pacifistas que o aplaudem. E que continuarão a aplaudi-lo, a despeito de tudo. Porque vivemos tempos em que muita gente está cega e surda. Não quer ouvir nem ver a ameaça que nos cerca.
posted by Miguel Noronha 3:49 da tarde
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