segunda-feira, outubro 11, 2004
EUA vs. Europa
Recomendo a leitura do artigo de Luciano Amaral no Público.
A tradicional concepção liberal de justiça (que podemos encontrar em autores clássicos como John Locke ou Adam Smith) organiza-se em torno dos seguintes princípios: os indivíduos prescindem do exercício da coerção privada para a delegarem no Estado, mas protegem-se da possível coerção excessiva do monopolizador legítimo dela criando uma esfera que ele não pode ultrapassar. Em John Locke, essa esfera tem o nome de "Propriedade" e não se limita à propriedade de bens materiais (já que inclui as tradicionais liberdades civis e políticas), mas compreende-a também. E dentro da propriedade de bens materiais, não se limita à propriedade da terra ou de uma empresa, mas inclui toda a forma de rendimentos legítimos. Para Locke, a propriedade é, acima de tudo, aquilo que o trabalho (a partir do nada, ou do mero potencial) transforma em riqueza. E é isso que cabe ao Estado proteger, i.e. a propriedade vista desta forma, ou seja, o trabalho criador. Não significa isto que o Estado (representando a "comunidade") se deixe de preocupar com aqueles que tentam criar riqueza mas a quem os azares da vida impedem de o conseguir. Deve, porém, servir apenas de amparo, em caso de queda, mais do que de garante universal de um rendimento individual. O Estado só pode ser esse garante se violar o seu princípio básico: o de protector da propriedade, pois só violando-a pode ele constituir-se em administrador dos fundos necessários ao fornecimento universal desse rendimento.
Ora, é o desrespeito pela tradicional "propriedade" liberal que marca o funcionamento do dito "modelo social europeu". Desse desrespeito resulta aquilo a que estamos assistindo: o crescimento da diferença na criação de riqueza entre a Europa e os EUA. Porque, como vimos, a tradicional concepção liberal de justiça associa esta ao mecanismo institucional que permite criar riqueza. Já a concepção do chamado "modelo social europeu" assenta na dissociação institucional entre a criação de riqueza e a realização da justiça. O que é defensável, mas convém ser assumido. E, ao ser assumido, convém saber se resulta: será que o preço a pagar em crescimento mais lento é justificado por uma maior igualdade social? Neste momento, sobre isso, tal como vejo as coisas e as estatísticas (mesmo nos próprios termos colocados pelos defensores do "modelo social europeu"), o júri ainda está fora da sala a deliberar.
Gostava de moderar um pouco a comparação transatlântica: nem os EUA são um paraíso liberal, nem a Europa é inteiramente um inferno iliberal. Mas, por agora, servem para o propósito comparativo. E servirão cada vez mais se a tendência dos últimos anos persistir nas próximas décadas. Como o processo de atraso da economia europeia é recente, talvez não sejam (por enquanto) visíveis diferenças de monta nos níveis de bem-estar deste e do outro lado do Atlântico - embora quem tenha viajado recentemente entre as duas margens note do lado de lá uma "aisance" que por vezes falha do lado de cá. Contudo, se o processo continuar sustentadamente no futuro, será que se vai abrir um fosso de desenvolvimento entre a Europa e os EUA? Será que a Europa se satisfaz por ter atingido uma espécie de "fim da história económica" ou, para utilizar uma linguagem que os economistas preferem, um "estado estacionário", onde o crescimento agregado da riqueza deixou de ser motivo de preocupação? E será que está a alcançar os objectivos de "justiça" que se propôs alcançar?
posted by Miguel Noronha 12:38 da tarde
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