sexta-feira, agosto 01, 2003
Cultura e Desenvolvimento Economico
Este artigo de Olavo de Carvalho foi publicado na revista Leader do Instituto de Estudos Empresariais. Não fazia sentido seleccionar apenas uma parte do texto pelo que o publico na integra.
(nota: link não disponível)
Se a cultura fosse um efeito da economia, como pensava Marx, a pergunta sobre as condições culturais propícias ao desenvolvimento não faria o menor sentido: o processo econômico, a cada passo, produziria as condições culturais de que necessitasse, e elas, passivamente, se limitariam a expressar um estado de coisas sobre o qual não exerceriam, em retorno, grande influência.
Foi Max Weber quem inverteu a equação marxista, mostrando que as mudanças culturais -- especialmente morais e religiosas -- muitas vezes se antecipam às econômicas e as determinam.
A aplicação dessa hipótese às origens do capitalismo -- para explicá-las pelo influxo da ética protestante -- acabou se revelando mais difícil do que parecia, e para tirar a dúvida Weber mergulhou numa investigação abrangente das relações entre religião, moral, economia e sociedade, donde saíram os brilhantes estudos sobre ?O Judaísmo Antigo?, ?As Religiões da China? e ?As Religiões da Índia?. As análises parciais deveriam convergir numa teoria geral segundo os princípios esboçados em ?Economia e Sociedade?, mas Weber morreu antes de completá-la.
Quatro décadas de discussões não bastaram para resolver o problema, mas fixaram na imaginação das classes letradas, como um lugar-comum, a associação referida no título ?A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo?.
Na década de 70, o cientista político e ex-ministro francês da Justiça, Alain Peyrefitte, defendeu com profusão de provas e documentos a tese de que o protestantismo não fomentara o desenvolvimento capitalista em razão do seu conteúdo moral, como supusera Weber, mas sim pela forma da organização das suas igrejas. Desprovidos de uma autoridade central como a do Papado, os grupos religiosos independentes encontraram na convivência igualitária, no livre comércio e na fidelidade aos mandamentos evangélicos, interpretados segundo a consciência de cada qual, os princípios de uma nova ordem social e econômica que floresceu no capitalismo moderno. Nos países católicos, inversa e complementarmente, a causa da paralisia econômica não foi a moral da Igreja, mas a centralização burocrática. O Papado, assustado com a rebelião protestante, atormentado de suspeitas contra tudo e contra todos, e ao mesmo tempo fortalecido pela súbita ascensão das monarquias católicas que as navegações haviam enriquecido, fechou-se numa hierarquia rígida e numa reivindicação de poder absoluto, eliminando o que restava do pluralismo medieval e sufocando a iniciativa de auto-organização da sociedade. Seu exemplo não demorou a ser seguido pelas monarquias sob a sua influência, especialmente Portugal e Espanha. O sonho de Sto. Tomás, de uma sociedade cristã de homens livres, unidos tão-somente como membros do corpo místico de Cristo, acabou-se realizando entre os ?infiéis? protestantes.
Max Weber, em suma, ouvira o galo cantar sem saber onde. Três elementos foram decisivos para o bom resultado econômico do capitalismo: (a) a liberdade de auto-organização; (b) a homogeneidade moral, resultado da fidelidade geral ao Evangelho (tanto mais estrita porque, não havendo autoridade formal superior, a Bíblia se tornava, diretamente, o critério comum para a arbitragem de todas as disputas); (c) o ambiente de confiança, honradez e seriedade criado pelos dois fatores anteriores. Em contrapartida, o autoritarismo papal e monárquico criou sociedades anêmicas, desfibradas, intimidadas e corrompidas pela subserviência à burocracia onipotente.
Nas modernas ditaduras nazista, fascista e socialista, a centralização burocrática foi levada às últimas conseqüências, criando o totalitarismo propriamente dito, o projeto da sociedade inteiramente controlada e planejada. Essa monstruosidade, perto da qual os monarcas absolutos e os papas da Renascença parecem anjos de tolerância, criou novas formas de corrupção e degradação verdadeiramente demoníacas, transformando cidadãos pacatos em militantes furiosos, executores de ordens macabras que repugnam à consciência humana. Herdeiros e cúmplices de crueldades sem fim, os militantes revolucionários condenam o capitalismo com uma indignação histérica que nada tem a ver com o verdadeiro sentimento moral, mas é apenas um disfarce neurótico destinado a sufocar a consciência de culpas superiores à capacidade de arrependimento do homem comum.
Em todos os regimes totalitários, o progresso inicial, forçado na base do terror e do trabalho escravo, acaba sempre cedendo o passo à anarquia mal disfarçada, à corrupção endêmica, à paralisia econômica e à derrota inevitável. O mesmo, em escala menor mas não menos notável, ocorre nas ditaduras, semiditaduras e pseudo-democracias do Terceiro Mundo, todas infectadas do vírus estatizante, centralizador e burocrático do nazismo, do fascismo e do socialismo.
Se o ?ethos? que favorece o desenvolvimento capitalista é baseado na síntese da liberdade político-econômica com a homogeneidade dos códigos morais, resultando na criação de um ambiente de confiança e responsabilidade, o fator principal que leva à paralisia é, na Renascença como hoje, a cultura da suspeita universal, da acusação projetiva, do ressentimento e do medo, que induz a população a apegar-se neuroticamente à autoridade -- seja a autoridade do Estado, seja a dos líderes revolucionários que professam destruí-la.
Uma cultura que destrói a fé antiga produz a anarquia moral que desembocará, fatalmente, na ascensão de uma autoridade ainda mais temível do que todas as anarquias.
Uma cultura que destrói a confiança dos homens uns nos outros convoca à existência o Grande Inquisidor que arbitrará todas as relações humanas, interpondo-se entre patrão e empregado, marido e esposa, pais e filhos.
Uma cultura que não busca a síntese do rigor moral e da liberdade política extingue ao mesmo tempo a moral e a liberdade.
Toda riqueza construída com base nessa cultura é de obtenção dolorosa e duração efêmera.
A condição sine qua non da prosperidade é a total destruição dessa cultura.
posted by Miguel Noronha 4:30 da tarde
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